Problemas Antigos. Desafios Recentes.

Ontem, dia 10/08, o Portal Jota publicou um artigo do autor do livro Conselhos do FUNDEB: Participação e Fiscalização no Controle Social da Educação, Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutorando em Políticas Públicas, em parceria com Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega, Mestre em Direito, o qual reproduzimos abaixo.  

Para ler este artigo e outros, também da área jurídica, na página oficial, é só clicar aqui! 

Toda ação do Estado exercendo seu poder próprio pode ser passível de indução dos agentes públicos, por meio de mecanismos impróprios, para que estes violem os deveres inerentes às suas funções na busca de vantagens indevidas para si ou para terceiros.

Compliance - ABRAOSC

Em um contexto recente no qual palavras como concessão, privatização e desestatização voltam ao nosso vocabulário de forma mais intensa, emerge, de forma mandatária, o conceito de regulação. A participação do Estado dá sinais de encolhimento, o que demanda a reinvenção de paradigmas e a busca por soluções diante de problemas antigos e desafios recentes.

Nesses mesmos tempos, em um mundo pós-bipolar que ainda luta para se afirmar, desponta também a discussão do combate à corrupção como um grave problema na sociedade atual. Tal questão ganha importância crescente em função da ascensão de um pensamento democrático hegemônico, bem como da percepção da relevância da sustentabilidade das relações e dos riscos relacionados à lavagem de dinheiro (e seus problemas vinculados, como o terrorismo), falências reputacionais e, ainda, da premente necessidade de serviços públicos efetivos e da promoção crescente de satisfação social, com um cidadão mais crítico e exigente.

A corrupção não é só um problema no setor público. E aquela presente no setor público, não é problema também somente para este. Abala as relações e fere a confiança na rede de atores, além de impor custos às transações realizadas em razão da implementação de salvaguardas que previnam as nocivas consequências de atos juridicamente vedados. A corrupção é um tabu que nos acompanha desde a época colonial do Brasil, comentada e percebida sempre no outro, sendo necessário seu reconhecimento para que seja devidamente combatida.

Pode-se dizer, inclusive, que, ao contrário do senso comum, a corrupção não se manifesta apenas nas licitações e contratos, tendo em vista que muitos escândalos não indicam um único empenho ou despesa associada. Toda ação do Estado exercendo seu poder próprio pode ser passível de indução dos agentes públicos, por meio de mecanismos impróprios, para que estes violem os deveres inerentes às suas funções na busca de vantagens indevidas para si ou para terceiros.

A regulação, opção do Estado de atuar em determinados mercados, sob diversos aspectos, com vistas a proteger o interesse público e fomentar a sustentabilidade, por meio de regras, fiscalização, estudos, advocacy, diminuição da assimetria informacional e mediação, também está sujeita ao risco de corrupção, pela sua própria natureza, um risco que precisa ser tratado.

Nesse sentido, a Lei nº 12.846/2013, chamada de Lei Anticorrupção (ou para alguns, a Lei da Empresa Limpa), com inspiração na legislação internacional [1] e em tratados dos quais o Brasil é signatário, traz em seu escopo de inovações, além da punição a pessoas jurídicas com pesadas multas e penas que afetam a imagem das empresas no mercado, uma novidade em termos de incentivos na aderência à ideia de mitigação dos riscos de corrupção: o conceito de Compliance.

O Compliance aqui debatido é uma resposta a um risco específico, chamado de risco regulatório. Trata-se do risco de a empresa ser punida pela atuação de seus empregados, prepostos e representantes em práticas ilícitas. A adoção de mecanismos de Compliance, além de atenuar o vigor das punições em caso de materialização de situações previstas na Lei anticorrupção, age de forma preventiva e inibitória, com a criação dos instrumentos necessários para que a organização enfrente esse desafio, que ganha destaque no cenário mundial e tem aptidão para afetar de modo notável a saúde econômica e a reputação das empresas.

Discutimos aqui um mecanismo de incentivo, não hierárquico, no qual o Estado busca atuar nos mercados para que ocorra a adesão a um framework de práticas que reduzam a corrupção pelo prisma do ente privado, corrupção essa oriunda da própria relação com o Estado e seus agentes. A estrutura de incentivos criada não se limita ao aumento do custo pela punição a ser suportada pela pessoa jurídica infratora, mas também evidencia, de forma pragmática, os benefícios que as empresas podem auferir em razão da adoção de providências relacionadas aos programas de compliance.

Nessa direção, as diversas modalidades de regulação [2] do Estado nos mercados, desde a trabalhista, como o Mercado de Capitais, Direitos Humanos e a própria regulação típica das chamadas agências reguladoras previstas na Lei n° 9.986/2000 e em outros dispositivos legais, traz em si, pela ação do Estado, o risco da corrupção e, consequentemente, o novo risco regulatório da Lei nº 12.846/2013, intimamente relacionado ao contato entre o setor público e o privado.  Trata-se de uma meta regulação.

Aqui temos o ponto central do presente artigo. A regulação, em si, de qualquer espécie, gera riscos regulatórios, tendo em vista o possível não atendimento aos normativos aplicáveis, o que demanda a efetiva implementação e aperfeiçoamento dos mecanismos de Compliance nas empresas. Com o advento da Lei nº 12.846/2013, surge uma regulação associada ao risco de corrupção na própria atividade dos reguladores, que passou a ser objeto de normas e punições, o que resulta na evidente necessidade de adoção de Compliance diferenciado.

Com efeito, deve-se pontuar que, independentemente da atividade econômica exercida e da intensidade da regulação existente, há sempre certo grau de contato entre agentes públicos e privados. A necessidade de autorizações e alvarás, além de observância de complexo conjunto de regras que movem a burocracia do Estado, fazem com que essa interação seja inevitável. Tais ocasiões estão mais presentes justamente em mercados com intensa regulação e constituem a oportunidade para a atuação de agentes mal-intencionados.

Da leitura das situações (ou tipos) positivadas nos incisos I, II e V, art. 5º da Lei nº 12.846/2013, percebe-se que parte dos comportamentos ali previstos enquadram-se em atividades típicas de regulação, como o aceite ou a oferta de vantagem indevida e, também, a própria ação da empresa de obstar a regulação. Ou seja, a Lei Anticorrupção prevê a punição das empresas que compactuarem, ainda que indiretamente, com tais comportamentos lesivos, cuja a probabilidade de ocorrência guarda nítida correlação com a intensidade do contato entre a máquina pública e o segmento privado.

Diante deste cenário, é certo que empresas que operam muito próximas ao setor público ou que dependam de recursos do erário devem ter cuidado redobrado ao planejar ações destinadas à mitigação de riscos de corrupção, e a discussão de Compliance pode ser útil nesse sentido. A análise dos riscos, diante dos desenhos regulatórios ao qual a empresa está submetida, podem gerar respostas customizadas, no que tange, por exemplo, a códigos de conduta, políticas de relação com agentes públicos e patrocínios.

É Importante ressaltar que, justamente por estarem submetidas a vasto e complexo espectro de regras, as empresas que atuam em setores regulados já são obrigadas a implementar mecanismos de controle e integridade que usualmente têm aptidão para impedir a prática de atos ilícitos. Nesta linha, vale frisar que a criação de ouvidorias, de sistemas de controle interno e de identificação de operações suspeitas são exigências inarredáveis em determinados segmentos da economia – tais como no setor bancário e no de seguros.

Todavia, a arquitetura jurídica da Lei nº 12.846/13, com uma nova forma para a aferição da responsabilidade das empresas, elenco específico de comportamentos considerados ilícitos e exigências decorrentes da regulação federal (Decreto nº 8.420/15 [3]), evidencia a necessidade de um detido planejamento para o atendimento a este novo cenário de combate à corrupção, sem prejuízo do aproveitamento dos mecanismos já implementados pelas empresas que atuam em segmentos regulados.

No tocante ao modo de responsabilização adotado pela Lei nº 12.846/13, frise-se que a possibilidade de a empresa ter que suportar duras sanções em razão de atos ilícitos praticados por empregados ou representantes, ainda que sem o conhecimento do respectivo corpo diretivo, faz com que as pessoas jurídicas tenham que adotar cautelas adicionais na prevenção de atos de corrupção. Destarte, empresas que atuam em mercados com regulação mais robusta, com pulverização na base territorial, e que concedam a terceiros poderes de representação, necessitam repensar suas estratégias nesse novo contexto.

Desta forma, destaca-se, entre as práticas de Compliance, a necessidade de realização periódica de cursos e treinamentos voltados essencialmente à mitigação e prevenção de ilícitos relacionados ao combate à corrupção, que permitam, a luz do desenho regulatório, a construção de uma estratégia específica para os riscos regulatórios da nova lei.

A adoção de códigos de ética e de conduta segue nesta mesma direção, sendo necessário que tais manuais adequem-se à realidade do ente empresarial, para que os respectivos empregados possam inferir qual o comportamento adequado nas variadas situações de risco de integridade a que estão sujeitos.

Diante de todo o exposto, depreende-se que o Compliance deve ser visto como um arcabouço de práticas e visões que podem ir além de uma mera resposta à regulação, de modo a enfrentar a possível corrupção oriunda da própria atuação regulatória do Estado. Essa nova meta regulação, voltada para a relação dos reguladores com os respectivos mercados na linha de prevenção de práticas ilícitas, exige um olhar diferenciado, no sentido de que não basta apenas exigir do corpo de funcionários a adesão às regras legais. É necessário adotar cautelas na relação com quem cobra essas regras, sob pena da aplicação de custosas penalidades a organização empresarial.

É imperativo que todos, Estado e empresas, adotem os esforços necessários para a criação e o constante aperfeiçoamento desses novos mecanismos de integridade, os quais se apresentam com características próprias notadamente em mercados de intensa regulação. Tal providência resulta em inegáveis vantagens, considerando o benefício decorrente da sustentabilidade e transparência nas relações público-privadas. Busca-se, assim, afastar os efeitos nocivos da corrupção à imagem e reputação das empresas no mercado, bem como as duras sanções advindas da Lei nº 12.846/13.

[1]  Nesse ponto, é relevante fazer menção ao chamado Foreign Corrupt Practices ActFCPA, que teve origem nos anos 70 nos EUA e constitui importante inspiração para a Lei nº 12.846/13.

[2]  Se olharmos na estrutura governamental, identificaremos um conjunto de órgãos responsável por cada uma dessas ações regulatórias.

[3] Esse Decreto detalha, inclusive, boas práticas no que tange a Compliance.

Sobre os autores:
Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutorando em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ (GPP/PPED/IE/UFRJ). Auditor de carreira da CGU. Coordenador do Livro “Controle Interno-Estudos e reflexões” (2013) e do livro “Controladoria no setor público (2016)”, ambos pela Editora Fórum (MG) e autor o livro “Conselhos do FUNDEB: Participação e Fiscalização no Controle Social da Educação” (2015), pela Editora Appris. 
Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega é Mestre em Direito, Instituições e Desenvolvimento pela Universidade Católica de Brasília, Auditor de carreira da CGU. Atuou como Chefe de Gabinete da Corregedoria-Geral da União e como Coordenador Geral de Responsabilização de Entes Privados na CGU. Atual Corregedor Adjunto da Área de Infraestrutura do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle

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